sexta-feira, 29 de abril de 2011

Coração Indômito


Mas e quanto ao homem? Fechou os olhos esperando por uma pancada que não veio. Sete anos se passaram desde a madrugada em que acordei com um sabre espetado no peito. Açulou-me uma, duas, três vezes, e não descansou até a vertigem me fazer tropeçar e andar com as mãos apoiadas nas paredes. Ele e o Ego, segurando um de cada lado. Talvez tivesse acordado mal naquele dia, sua voz tremia como as mãos de um velho centenário, na incoordenação dos que não conseguiam mais abotoar uma camisa, pegar moedas no bolso, saber o que dizer ou amarrar os sapatos. Desejei morrer como nunca tinha desejado nada na vida, por saber que dedicaria cada minuto do meu tempo a esperá-lo e, sobretudo porque sonhava em acordar uma manhã nos braços de um destino que decididamente, sabíamos cruzados. Mas ele não compareceu ao encontro marcado. As horas perderam os números. Os dias ficaram inominados. Vi de perto no que o orgulho ferido de um homem é capaz de transformá-lo. Num juiz hostil que até um simples aceno, por tédio ou vaidade, haveria de privar-me. Por um breve instante cheguei a pensar que meu próprio espírito estivesse esterilizado. E de tudo o que ouvi naquele dia, arrisco exatamente o contrário, não fui um "aborto prematuro", fui antes, um aborto provocado. Dizia a mim mesma que se alguma coisa poderia me salvar dos efeitos colaterais daquela lâmina afiada, antes que um surto de loucura o fizesse, seriam as palavras. Sentei-me diante de minha underwood e acariciei suas teclas enferrujadas. Cada tecla que batia no tambor era a continuação de minhas mãos amputadas. Senti-me como uma pastorinha órfã, cuja única forma encontrada para sensibilizar a providência divina, foi a de chutar o Espírito Santo nas partes baixas, ansiando pelo momento mágico em que ele desceria do altíssimo para resgatar a minha alma, e se isso fosse possível, salvá-la. Por um instante me senti bem com aquilo. Depois me senti mal por ter me sentido bem. E por fim me senti bem por saber que meus dedos foram a coisa mais parecida com a justiça que eu tanto procurava, embora ela sempre tirasse férias nos momentos em que eu mais precisava. Pela primeira vez escrevia para mim, e mesmo sabendo dos riscos que corria, eu não me importava. Quanto ao homem, bem, curiosamente, cedo ou tarde a consciência se faz carne. E as que não apodrecem, sangrarão eternamente. Encontrei-o onde havia caído. Num trem de carga abandonado, cujos vagões não eram mais do que um exército de esqueletos metálicos cobertos pelo mato, à espera da generosidade de alguém que pudesse senão destruí-los, aos menos desmanchá-los. Recordo apenas os olhos. Estes recordo. Estavam abertos. Perdidos em qualquer ponto negro que o impedissem de ver as larvas do ego abraçando-lhe os restos. Em verdadeiros estranhos. Foi nisso que acabamos nos transformando. Não por ele ter ido ao encontro do que nunca será, mas por não poder fugir do que realmente era. Uma tarde acordei daquela letargia de esperas e a circunscrever-me o silêncio cortante dessa despedida que só agora faço. Levantei e quando levei as mãos ao rosto, encontrei apenas uma cicatriz no lugar dos lábios. Arrastei-me tão lentamente quanto pude, e ao olhar em volta notei que aquela ferida negra e sem fundo havia se fechado. Soube naquele instante que não era meu aquele sangue derramado. Deixei escapar um grito de triunfo e sorri à saúde do amor que nos uniu e da indiferença, que em seguida, haveria de separar-nos. Não pela dor de ter no peito um sabre trespassado, mas pelo susto de constatar que apesar do rasgão ter sido fundo, meu coração estava intacto.

(desconhecido)

terça-feira, 26 de abril de 2011

Fernanda Gaona

"Nenhuma palavra dita fará com que você me compreenda, se verdadeiramente não souber ler o que transpareço. Portanto, nada de deduções. Sou um filme sem legenda, só quem fala minha língua consegue me entender."

(Fernanda Gaona)

segunda-feira, 18 de abril de 2011

A vida e suas exigências



"Tudo me atinge, vejo demais, ouço demais, tudo exige demais de mim."

(Clarice Lispector)

Cartas para Julieta

"Querida Julieta,
Estou numa casamata. Escuto mísseis explodindo e disparos de armas de fogo lá fora. Tenho 22 anos e estou amedrontado. Nosso comandante tinha nos dito que logo precisaríamos sair. Estamos para travar uma batalha corpo a corpo. Pressinto que vou morrer. E envio este bilhete como meu testamento ao mundo ao deixar esta vida. Estou confiando-o a você, símbolo do amor universal. Iludo-me pensando que isso vai fazer as pessoas entenderem a futilidade do ódio.


Brian L., Vietnã, 1972"

(Do livro: Cartas para Julieta, página 94)